A denominação "maternidade/paternidade" é objeto de grandes questões nas religiões de matriz africana, como Umbanda e Candomblé.
Uma vez que a tradição do povo-de-santo exige que o sacerdote/sacerdotisa seja tratado comumente como Pai/Mãe, os seguidores se tornam automaticamente Filhos, devedores de respeito e obediência como nas relações carnais.
A grande questão envolvida aí é que em geral os praticantes já se iniciam na religião após certa idade, com personalidade formada, com educação e valores incutidos- a sua educação de "berço"- e com suas experiências pessoais que não são as mesmas que seus assim chamados "irmãos", nem mesmo que seu "pai/mãe". Como a vida no terreiro é uma vida comunitária, é necessário uma adequação e um entrosamento entre as pessoas envolvidas, para que esse convívio seja harmonioso. Entra aí em ação a chamada "educação de axé", onde o pai/mãe vai criar um nível aceitável de exigências comportamentais para garantir essa harmonia da casa-de-santo.
Em alguns casos, essa relação pais/filhos transcende o religioso e cria raízes na vida pessoal, com pais participando do dia-a-dia dos filhos e vice-versa, em uma convivência estreita e prazerosa para ambos.
Essa relação se torna perfeita em sua aplicação.
Em outros casos, essa relação se restringe ao espaço da casa-de-santo, nos dias de função religiosa, onde pais e filhos convivem harmoniosamente durante o tempo necessário para o cumprimento das funções ritualísticas. Isso pode acontecer até em função da distância física entre a casa e o terreiro, porém em alguns casos o motivo para essa separação entre sagrado e mundano é a diferença de valores e a falta de vontade de uma convivência mais estreita, devido a diferenças de estilo de vida, por exemplo.
Por quê essa dificuldade?
Diferenças de opinião, de criação, de valores, de vontade.
A conotação pai/mãe é extremamente pessoal e na maioria das vezes tem a ver com valores aprendidos com esses entes na vida pessoal.
Se uma pessoa tem pai/mãe presentes, amorosos e companheiros, não vai aceitar uma relação tirânica com a mesma denominação.
Se tem pais ausentes, não vai ter a noção do respeito envolvido nessa relação.
O sentido mais amplo de paternidade/maternidade é o comprometimento intrínseco exigido tanto de pais, como mantenedores da relação, quanto de filhos, seguidores e submissos ao poder dos pais.
Um sentido mais estreito é o do papel de cuidador embutido na denominação pai/mãe: é aquele que cuida de alguém, que zela por alguém. E o filho se enquadra na situação de dependentes desse cuidado, que será dado a ele pelo pai/mãe.
Quando essa relação acontece dentro de um contexto religioso, limitado pelo espaço-tempo da casa-de-santo, acontecem conflitos no entendimento de direitos e deveres de pais e filhos, uma vez que essas relações são baseadas em tradições hierárquicas que normalmente não prezam pela transparência em seus métodos. Conversas francas sobre delimitação de espaços emocionais e exigências de ambos os lados são praticamente impossibilitadas pela própria natureza de uma relação onde há poder sobre o outro.
O que se espera de um pai/mãe?
O que se espera de um filho?
Ou um pouco mais além: o que se espera de uma relação onde a dependência é necessária como parte da tradição, mas essa mesma dependência fica à mercê dos desejos e conveniências de um detentor do poder e do saber?
Uma religião iniciática e hierárquica - essa é a definição básica do Candomblé.
Onde um neófito precisa do poder de um sacerdote para ser iniciado e depende dos ensinamentos dados a ele para subir os degraus da hierarquia.
Onde um sacerdote tem o poder de manipular a vida de alguém, mas aliado ao fardo da responsabilidade sobre o crescimento espiritual e pessoal de uma pessoa.
Uma relação baseada em poder e obediência, ambos cegos, ambos unilaterais, ambos limitados e ao mesmo tempo ilimitados.
Como encaixar essa relação em valores pessoais, cotidianos, em necessidades físicas e emocionais de pais e filhos?
Convido meus amigos religiosos a essa reflexão, lembrando que escrevo sobre a minha opinião, apenas, e cada olhar diferente é bem vindo.

Belo artigo sobre essa que é, na minha opinião, a mais delicada questão dentro de uma casa de santo após a dedicação individual para com o sagrado.
ResponderExcluirHoje me encontro afastado da casa onde fui iniciado por não ter conseguido estreitar minha relação pessoal com meu pai de santo - a quem, independente de tudo e qualquer coisa, sempre prestarei meus respeitos - mas, principalmente, por não aceitar imposições egocêntricas dos meus irmãos nos meus espaços individuais fora dos limites do axé.
Apesar de 'reclamão' e dono de uma personalidade nada fácil de se lidar, sempre segui a cordialidade como um dos princípios da boa convivência. Mas ser educado está longe de ser conivente com tratamentos desrespeitosos movidos únicamente pelo interesse de se mostrar poderoso(a) perante seus mais novos.
Então, irmã, minha opinião é de que a hierarquia precisa ser respeitada sim, claro, mas da mesma forma que o 'aburo' tem a obrigação de honrar seus mais velhos, os 'ebômis' e 'ajoiês' precisam ter a consciência de que a cordialidade deve ser mútua e deixar de lado argumentos como "se eu passei por isso vocês também vão passar". Levamos conosco apenas o que pode servir para o bem.
Parabéns pela postagem e que venham outros textos como este!
Motumbá,
Carlos Cavalcanti (Fomo de Oxalá).